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quarta-feira, 26 de março de 2008

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Depois da Morte do Cão

Os olhos já não freqüentavam os espaços que lhe eram casuais – eram fora. Havia caminhado, talvez, a vida toda. Parece-me, observando de longe, que veio assim já livre – nem casa, nem apegos. Errante. Deve ter passado tempos duros, principalmente os primeiros de uma incapacidade logo superada pela necessidade estranha de continuar. Assemelha-se aos errantes do lado de cá, a diferença está na liberdade, que apesar de dura, é menos previsível. Podia tanto acabar esfacelado, como de fato acabou, como também não haver passado dos primeiros dias.

Suas tripas furaram seu corpo de dentro pra fora – o que impressionava eram os olhos saltados entre um quase viver e a impressão da morbidez que olhos assim nesse estado possuem – sem brilho. Mas porque diabos depois de tantos anos por ai, logo hoje, esse tal investe louco contra o ônibus? Esse ônibus de número sete sempre vira a direita depois da farmácia de nome droga Sete – isso mais pela proximidade a tal rua do que pela fama cabalística de tal número, e isso tudo não tem importância – mas é licito lembrar que o cão não possui sete vidas.

Houvesse chovido como ontem estaria ele em abrigo da chuva e menos transeunte como hoje pela manhã – é noite agora e tento dormir, mas a imagem do cão – os destroços do cão – não me sai. Agora mesmo estava sonhando com uma relembrança infantil e memórias inventadas. No sonho era meu aniversário e eu, como todo clichê de filme, queria um cachorro – quando a caixa enorme chegou das mãos de meu pai, meu pai tinha a feição do motorista do ônibus chegava a estar de uniforme, eu ouvia os gemidos daquele filhote encaixotado pelos furos feitos pra respirar. Meu pai postava a caixa no chão, ao abrir a caixa os gemidos se transformaram em grito agudo de dor final - dor consciente de morte – o cachorro, ou aquelas partes que lembravam um cão – eu olhava ao redor e só via pessoas desconhecidas e minha mão estava repleta do sangue do bicho. Não sei por que não consigo dormir – esse foi meu primeiro encontro com tal cão e sinceramente não sou afeito aos bichos, muito menos um cão fedido. Mas corre em câmera lenta a cena toda do atropelamento – diriam que fiquei impressionado.

A pata estava torcida como um pano e os pequenos filamentos musculares da outra parte estavam em leque – os pelos se misturavam com o sangue e este com óleo de freio – algumas partes estavam chamuscadas – como que queimadas – deve ser pelo fato de que o cão fôra arrastado por alguns metros. Algumas pessoas cessavam o caminhar, olhavam enojadas, seguiam para seus afazeres com alguma tristeza passageira, as mães com crianças apontavam vitrines para que não olhassem – e o cão ficou lá.

Naquela tarde eu estava saindo da escola, voltava sempre a pé, chutando coisas e me demorando muito vendo outras – me dava algum prazer observar os insetos principalmente formigas e suas trilhas de mantimentos. Chamou-me a atenção naquela ocasião uma moita que muita se mexia contra o vento, fuçando lá, retirei um pequeno cão – faminto – com algumas moedas no bolso o alimentei com um pão e deixei minha camiseta com ele. A noite de certo que esfriaria e isso me custou além da surra uns dias de castigo. No dia seguinte não havia nada na moita, mais adiante alguns moleques amontoados, um deles com um pau fino de galho de arvore na mão, cutucavam um saco preto de lixo, um deles conseguiu vazar os olhos do cão. Especulamos que alguém, como não findava o choro noturno do desmamado, resolvera o problema com um simples saco. Continuamos o caminho da escola.

O cão investia destemido contra a proeminência do ônibus, era uma batalha épica. O cão andou emparelhado com o ônibus, latia alto em tom de fúria. Eu cá da calçada ficava olhando a bravura do pequeno animal desnutrido, fraco e destinado à derrota. O cão em gesto de esforço final, sua língua já não habitava sua boca, ultrapassou a roda dianteira esquerda do ônibus.

Quase nunca tenho vontade de ir ao banheiro a noite. Levantei. Um barulho vinha da despensa, barulho de coisas sendo rasgadas violentamente. Acendi a luz do cubículo. Hoje passei perto da Rua sete, tudo não passava de uma mancha no asfalto.


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terça-feira, 25 de março de 2008

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Quando a chuva passou.

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Quando a chuva passou,

isso foi hoje pela manhã

subiu um cheiro de terra molhada

do que sobrou de terra no quintal

(canteirinho minguado).



lembro do encardimento

do barro nas peças brancas,

do azul anil da água

antes da roupa quarar ao sol


- e das broncas.


e de quando desenhava um sol

com giz de construção

para depois da chuva

secar o quintal

mexer no barro para

fazer lama.




Quando a chuva passou,

sobraram algumas poças

umas paredes molhadas

tristeza boa de lembrança.



em dias de chuva

espreitávamos da janela

a chuva molhar as roupas

do varal,

enquanto desesperada

a mãe corria acudir

a roupa branca.


a mãe precipitava

engraçada

arrancando as

roupas do varal

a gente se ria,

e morria de medo

de a mãe ver que riamos.



Quando a chuva passou,

-Saí do abrigo da marquise ,

agora é um medo,

coisa de correr da chuva

e correr

para algum lugar.

Coisa que não se tem em

criança.



Quando chovia,

a gente queria mesmo

era se molhar.



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